top of page
Foto do escritorLabGEPEN

Semana Mundial da Alimentação e a pena de fome no sistema prisional


No dia 16 de outubro celebramos o Dia Mundial da Alimentação, o que nos leva a refletir sobre a importância da luta pelo direito universal de todos à alimentação adequada. No Brasil, esse debate se torna ainda mais urgente quando olhamos para o sistema prisional, onde a pena de fome afeta toda a população encarcerada, com destaque a pessoas com restrições alimentares, mulheres que são mães e/ou provedoras de família, gestantes e lactantes. Essas mulheres privadas de liberdade enfrentam a falta de uma nutrição adequada, o que impacta não só sua saúde, mas também a de seus filhos e dependentes.

Com o intuito de aprofundar a questão e gerar reflexões no dia de hoje, o Labgepen disponibilizou um artigo de José de Ribamar de Araújo e Silva - filósofo, teólogo, especialista em economia solidária, Mestre e Doutorando em Direitos Humanos e Cidadania - que versa sobre o direito constitucional a alimentação e nutrição adequada e sua violação em espaços de privação de liberdade, transmutada em um sofisticado formato de prática de tortura.


_________________________________________________________________________________________


Que pena! Ainda falamos de pena de fome!??


José de Ribamar de Araújo e Silva

*Mestre e Doutorando PPGDH/UNB


“Davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos!” Maria Firmina dos Reis - Úrsula[1] 


Os povos e comunidades tradicionais, indígenas e negros são historicamente os mais vulneráveis, quer seja pela dificuldade no acesso as políticas públicas em geral, condenados aos mais graves indicadores sociais. O problema que não resolvemos como políticas públicas, na segurança alimentar e nutricional vira problema de segurança pública, redundando em eliminação física no denunciado ‘extermínio da juventude negra’. Segundo Atlas da Violência 2020, produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), as vítimas da violência letal no Brasil, 74,4% são negros, 25,3% brancos, 0,4% amarelos (Ipea, 2020)[2], ou no encarceramento em massa.

Conforme já tratei em minha dissertação de Mestrado “Adicionalmente, relatos indicam que a qualidade da água é muito baixa, pois raramente a caixa da unidade é limpa, já tendo sido encontrados animais mortos no local. A má qualidade da água é fonte de adoecimento das pessoas presas, provocando disenteria, por exemplo. Inclusive, algumas funcionárias disseram não consumir a água da unidade por desconhecerem se é própria para o consumo. As pessoas que necessitam de dieta especial em função de um problema clínico ou por orientação médica, em geral, não são atendidas em suas necessidades específicas, como é o caso das pessoas privadas de liberdade com diabetes, submetidas a um intervalo muito grande entre as refeições. Tampouco há alimentação diferenciada para mulheres grávidas e lactantes. Desse modo, muitas mulheres dependem de suas famílias para complementar sua nutrição. Aquelas que não recebem visita estão sujeitas à boa vontade de suas companheiras. No entanto, a família sofre uma série de restrições para trazer os alimentos”[3]. Além das restrições orçamentárias das famílias na maioria das vezes carentes, que se obrigam a prestar uma alimentação de qualidade, quando só deveriam fazer de forma complementar ou supletiva e o fazem em substituição ao Estado.

“É com essa experiência e motivação que nos sintonizamos com essa proposta metodológica, na busca do aprofundamento do conhecimento sobre processo de construção do direito constitucional a alimentação e nutrição adequada, consagrado no Capítulo II, artigo 6º da Constituição Federal[4] e a sua sucessiva violação, sobretudo nos espaços de privação de liberdade prisional, onde se converte em vetor de tratamentos cruéis, desumanos, degradantes e tortura, ferindo a um só tempo aos artigos 12 e 41 da LEP(7210/1984), que tratam da alimentação como direito das pessoas privadas de liberdade no sistema penitenciário, o preceito constitucional e o compromisso internacional assumido quando da ratificação do OPCAT/ONU”[5]

Dentro da concepção do caráter punitivo e retributivo, é comum a justificativa de que o sofrimento infligido para além da privação da liberdade é justificado em benefício do próprio sacrificado. Algumas gravuras que ilustram possíveis fatos históricos desde a Idade Média dão conta dessa realidade, como “a filha que amamentou o Pai”, obra atribuída ao pintor alemão Hans Sebald Beham (1500 – 1550), que expressa já naquele contexto a privação da alimentação como estratégia de penalização e de pena de morte. É o que expressa o texto que acompanha a referida obra como veremos a seguir ilustrado.



“Imagem que inicialmente pode nos causar estranheza, mas este quadro foi vendido por mais de 30.000.000 € a um marchand que conhecia o seu real valor. Esta obra de arte conta uma história trágica. Um pobre idoso da época de Luis XIV, foi preso por roubar um pão e foi condenado a morrer de fome. Sua filha, ao saber da dor de seu pai, pediu permissão para visitá-lo, e em cada visita, os guardas revistavam adequadamente a jovem e o bebê de seis meses que ela levava em seus braços, para que nenhum tipo de comida fosse levado a ele. Assim lhe permitiam a visita uma vez ao dia. No final do quarto mês, ao perceber que o condenado não morria, as autoridades decidiram vigiá-lo de perto e descobriram que sua filha e única visitante, em cada uma de suas visitas alimentava o pai com o leite do seu bebê. Informados, os juízes em vez de se irritarem e condená-la, se compadeceram da mulher, frente ao amor que demonstrava pelo pai e pela sua determinação para salvar a vida do seu pai e protegê-lo a qualquer custo. Então os juízes ordenaram a libertação do idoso e sua filha. Essa história chegou aos ouvidos de um famoso pintor que traduziu na tela, para imortalizar o relato (BUCH, 2020)”[6]

“Infelizmente para confirmar a máxima marxista de que a história se repete, “a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”[7], a realidade hoje se apresenta de forma mais cruel. Pois hoje, não obstante, a lógica da prevalência do “direito da primeira infância”, o que assistimos é o império da subjetividade que dá lugar a discricionariedade num contexto de seletividade penal, e faz com que não obstante a conquista do STF que concedeu Habeas Corpus coletivo para substituir a prisão preventiva pela domiciliar a todas as gestantes ou mães de crianças até 12 anos e deficientes, exceto nos casos de crimes praticados pelas mulheres mediante violência ou grave ameaça, ou contra seus filhos. Tanto mais num contexto da Pandemia do COVID-19, quando o CNJ publicou a Recomendação 62, que prevê a reavaliação das prisões provisórias, nos termos do art. 316, do Código de Processo Penal, priorizando-se: a) mulheres gestantes, lactantes, mães ou pessoas responsáveis por criança de até doze anos ou por pessoa com deficiência, assim como idosos, indígenas, pessoas com deficiência ou que se enquadrem no grupo de risco (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020)[8].

O que vemos em geral é o arranjo institucional que acaba privando de liberdade a criança e ao adolescente dependente ou privando-o do sagrado direito de alimentação, quando não concede o referido Habeas corpus ou a prisão domiciliar para a única provedora da família. Outra forma de arranjo institucional é quando constroem “puxadinhos”, batizados de berçário, para de certa forma também enclausurar a criança negando às mães a titularidade dos direitos previsto no HC coletivo ou na Recomendação 62, no contexto da pandemia. Até mesmo se priva o bebê do leite materno, afastando a mãe do bebê a ser amamentado, o que vem se confirmar nas “masmorras medievais” em que se transformaram os cárceres brasileiros, conforme admitem autoridades em voz corrente: “Os presos tornam-se ‘lixo digno do pior tratamento possível’, sendo-lhes negado todo e qualquer direito à existência minimamente segura e salubre. Daí o acerto do então Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, na comparação com as ‘masmorras medievais’” (BRASIL, 2015).



Dessa forma, o aprisionamento e ruptura dos laços maternais e o direito de amamentar, em crimes de menor potencial ofensivo, afronta a um só tempo os direitos de mãe e os direitos elementares do bebê em se alimentar, essencial e reconhecido na Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

Nesse sentido, há que se priorizar a liberação das mulheres para o cumprimento de medida em prisão domiciliar, para a redução dos danos que podem ser ocasionados pelo afastamento da figura materna vigiando sobre a discricionariedade da seletividade penal.

Este cenário reflete a herança da colonização escravagista que condena, sobretudo, as populações historicamente expropriadas da sua territorialidade étnica, indígenas e negras a uma sucessão de violações de direitos elementares, da terra, do trabalho, etc. Consolidando a excludente política de insegurança pública a insegurança alimentar e nutricional que afeta substancialmente os segmentos que estão nos extremos da cadeia produtiva e por conseguinte da linha de pobreza, e não por acaso são populações negras, em grande parte famílias chefiadas por mulheres. Sobretudo quando se encontram em privação de liberdade.

Dessa forma, os segmentos mais excluídos, e por consequência disso, muitas vezes empurrados até por crimes famélicos e que, portanto, pelo ordenamento legal deveriam ser ‘excluídos de licitude’, são privados de liberdade, do direito de ‘ir e vir’, mas titulares do sagrado direito elementar de se alimentar. Portanto, sob custódia do Estado, são cidadãos e como tal devem gozar do Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequada que deve ser provido pelo Estado democrático de direito. Em síntese quem não prover a alimentação não pode privar a liberdade de quaisquer ser humano. Noutra palavra mais dura, o Estado que não pode prover o mais elementar dos direitos de se alimentar, não tem autoridade de prender.

Pelo que se reafirma não haverá um autêntico projeto de nação se não for garantida a obrigação do Estado de prover o Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequada, sobretudo do custodiado. Isso nos desafia a ficar sempre mais atentos e mobilizados para reverter politicamente esse cenário que nos condena a ser um dos países que mais mata de fome ou extermina, quando não encarcera condenando a ‘Pena de fome e sede’.


 

[6] BUCH, José Carlos. A filha que amamentou o pai. 4 dez. 2020. Disponível em: http://acecatanduva.com.br/artigos/a-filha-que-amamentou-o-pai

[7] MARX, K., Dezoito Brumário de Louis Bonaparte, São Paulo: Centauro, 2006.

留言


bottom of page